quinta-feira, 1 de junho de 2017

... E Sherlock Holmes tinha razão...

O maior (tanto de qualidade quanto de barriga) autor de livros da Grã-Bretanha, Gilbert Keith Chesterton, era Jornalista dentre outras várias atividades. Uma de suas frases imortais diz o seguinte: “Não foi o mundo que ficou pior, foi o Jornalismo que ficou melhor”. Chesterton se referia principalmente ao modo como os jornais pareciam mostrar mais precisamente os detalhes da notícia, com menos fantasia e mais informações concretas, de certa forma uma novidade no início do século XX, sucessora de uma época marcada pelo chamado Jornalismo Literário. Jornalismo este que Truman Capote, por alguma estranha razão um dos maiores nomes jornalísticos do século passado, parece ter se empenhado vivamente em trazer de volta em “A Sangue Frio”. A história de como dois asssassinos – Richard Eugene Smith e Edward Perry Smith – invadiram a casa de Herbert Clutter e mataram-no, assim como os demais membros da família, a esposa Bonnie e os filhos Kenyon e Nancy.
Capote dedicou anos de sua vida profissional a pesquisar tudo o que foi possível sobre o massacre da família Clutter, no Estado do Kansas, em 1959. Alguns poderiam ver essa frase e pensar simplesmente que o autor passou horas em bibliotecas e arquivos de jornais ou pendurado no telefone. Bem provável que isso também tenha acontecido, mas também ajudou o fato de que Capote chegou em Holcomb, palco da tragédia, um mês depois de esta ter acontecido, de modo que acompanhou em primeira mão praticamente toda a investigação feita em busca dos assassinos. É importante destacar esse detalhe. Um bom Jornalismo é feito, antes de tudo, com uma apuração que seja no mínimo ótima. O Jornalista que consegue deitar as mãos no maior número possível de materiais relevantes ao seu trabalho pode permitir que a história surja por si mesma, sem praticamente nenhuma interferência de sua parte. E é importante destacar também este ponto, porque existe um mito corrente entre os leigos que se deve, de certa forma, a esta obra: toda informação concernente a um assunto merece ser publicada.
E não, não merece.
Se existe algo de condenável em “A Sangue Frio” é que Truman Capote mostrou ser, se não um sonhador, um mentiroso. Ele promete Jornalismo e entrega um romance água-com-açúcar. Ele teve nas mãos a chance de entregar um material que seriviria de guia tanto de apuração jornalística quanto de investigação policial. Capote preferiu esconder o máximo possível de informações relevantes a respeito do passo a passo da rotina policial e encher o relato de floreios e devaneios. Há de se questionar mesmo até onde podemos confiar no quanto de imersão o autor teve para descobrir cada pensamento e ação ínfima de cada personagem participante da trama. Como, por exemplo, no trecho abaixo:

-Nossa, Kenyon! Estou te ouvindo.
Como sempre, Kenyon estava com o diabo no corpo. Seus gritos subiam pelas escadas:
-Nancy! Telefone!
Descalça e de pijamas, Nancy desabou pelas escadas. Havia dois telefones na casa: um no quarto que o pai usava como escritório, outro na cozinha. (Pg. 22; Editora Abril)

A única informação relevante nesse trecho é o número de telefones e a localização dos mesmos. O resto é apenas uma tentativa de fazer o leitor entender que os Clutter eram uma família interiorana comum com uma rotina comum de família. Algo que poderia ter sido explicado em menos de um capítulo apenas com entrevistas feitas com amigos e vizinhos. Além disso, nesse trecho participam apenas Kenyon e Nancy, ambos mortos durante o ataque. Como Capote saberia todos os detalhes precisos da cena e do ambiente sem pelo menos uma testemunha? Situações assim aparecem em diversas partes do livro, e piora quando o autor embarca em sonhos e pensamentos pessoais dos personagens. É o suficiente para começar a questionar se Capote não aproveitou para tomar algumas “licenças poéticas” em pontos específicos. Mas se isso realmente aconteceu em um livro que deveria ser um relato jornalístico, pode-se questionar a veracidade de TODOS os fatos apresentados ali. E isso por si só é um grande problema.
E assim é explicado o título desse texto ser “... E Sherlock Holmes tinha razão...”. Para quem lembra dos contos do detetive criado por Sir Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes tinha exatamente essa reclamação a respeito dos humildes relatos feitos pelo Dr. John Watson: transformar aquilo que seria uma amostra das habilidades analíticas de uma investigação real em uma literatura comum “que pode muito bem entreter, mas não instruir o leitor”. O livro por si só é uma ótima narrativa, prende a atenção e cumpre o seu papel como literatura. Mas, e faz-se necessário voltar a insistir, “A Sangue Frio” é um romance literário baseado em fatos reais, e NÃO um livro-reportagem, e seria muito mais decente da parte de Truman Capote se tivesse admitido essa verdade desde o princípio.

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