segunda-feira, 26 de junho de 2017

Donald Trump e o Jornalismo Egoísta


Antes do texto em si é necessário uma explicação de por que decidi pô-lo aqui. Há vários dias uma certa jornalista de certo blog jornalístico (a redundância acaba sendo necessária por questões de contexto, mesmo que não haja motivo pra incluir nenhum nome) publicou análise própria sobre o texto “O Jornalismo Pós-Trump”, da jornalista Daniela Pinheiro, revista Piauí. Apesar de não concordar com o posicionamento das mesmas, gostei do texto e postei um comentário, que foi retido pra análise da moderação. Ocasionalmente verificava o que tinha acontecido, e sempre me deparava com a caixa de comentários vazia. Atribuí isso a simples questão de prioridade ao tempo e deixei passar. Hoje, porém, estou mais propenso a aceitar que meu comentário simplesmente não foi aceito pela moderação. Decidi ir direto à fonte e comentar na matéria original da Daniela Pinheiro, no site da Revista Piauí. Pra minha surpresa, não há caixa de comentários. Talvez seja ativa apenas aos assinantes, mas mesmo assim diz alguma coisa sobre esse Jornalismo que escolhe o que quer ouvir e de quem quer ouvir. Não que haja alguma surpresa nisso, mas se trata de algo que valeria uma discussão mais a fundo. E já que, de algum modo, me tornei responsável pela minha própria voz, este é o meu espaço, embora em circunstâncias normais esse post nem sequer existiria. Isso posto de lado, meu comentário acaba se tornando voltado diretamente ao texto original da Daniela Pinheiro, que não é ruim apesar de abordar o problema proposto de um ângulo tanto egoísta. Pelo menos alguém teve senso de apontar uma nova linha de raciocínio.

Uma boa reflexão e um texto muito bem embasado, mas penso que alguns detalhes menores – ainda que relevantes – foram deixados de fora, inclusive pela própria Daniela Pinheiro. Então, se me permite o espaço... [Mantive a frase pra cuidar a fidelidade do texto original, embora seja óbvio que o tal espaço não me foi permitido]
Houve um candidato muito mais bem preparado que Donald Trump pra concorrer pelo Partido Republicano: Ted Cruz. Chegou inclusive a ameaçar derrotá-lo durante as primárias. No entanto, cedeu sua vaga. Por quê? Porque Cruz entendia que os Estados Unidos não acreditariam num Republicano que parecesse só a promessa de uma extensão do Governo Bush, precisavam de alguém que, antes de tudo, mostrasse saber de verdade os problemas do país e como resolvê-los. Se, por milagre, Ted Cruz fosse eleito, seria pouco mais que uma fachada. Trump era o líder que precisavam lançar, e assim o fizeram. O texto fala numa falha do Jornalismo em separar o Trump político do Trump celebridade. Uma falha maior ainda é ignorar que o Trump político NUNCA existiu. Sempre foi o Trump pensador, observador, estrategista e homem de negócios. Manipulou o Jornalismo? É ÓBVIO QUE SIM! PORQUE O JORNALISMO DE HOJE É IDIOTA O SUFICIENTE PRA SER PREVISÍVEL! Sendo eu mesmo um graduando em Jornalismo, posso afirmar sem medo que o desafio principal do jornalista – e seguramente o mais ignorado por uma fatia gigante dos profissionais – é saber o que fazer sem se permitir ficar arrogante. A maior glória de um jornalista é um Pulitzer, e não um texto bem escrito e bem apurado.
Os jornalistas americanos ficaram putos porque os discursos de Trump não eram destinados a eles, e sim diretamente aos potenciais eleitores. O Jornalismo atual não aguenta que a autoridade tenha um canal direto ao público, precisa ser o filtro ou então perde sua razão de existir. Gilbert K. Chesterton (que era jornalista entre diversas outras coisas) avistou isso muito bem quando disse: "O Jornalismo consiste largamente em dizer que Lorde Jones morreu a pessoas que nunca souberam que Lorde Jones estava vivo". Os jornalistas, vamos falar sério, gostam de soltar informações de acordo com o impacto que eles querem que tenha no público. Um exemplo excelente disso é justamente a polêmica do muro. "Ah, é um intolerante, quer fechar os Estados Unidos, não gosta dos mexicanos, não gosta dos latinos", etc. etc. etc.. Tudo porque queria aumentar o controle das fronteiras e manter os imigrantes dentro da lei. Mas o que realmente interessa é: se um muro na fronteira dos Estados Unidos com o México é uma ideia tão intolerável e preconceituosa, por que as pessoas iriam querer eleger a esposa do homem que teve a ideia original? Convenientemente o Jornalismo deixou essa informação de fora, o primeiro muro foi idealizado E CONSTRUÍDO pela gestão de Bill Clinton. E a primeira vez que se falou numa expansão foi em 2006, quando Barack Obama estava na Casa Branca. E o Jornalismo só viu problemas quando foi Trump que falou nisso.
Baron foi a única fonte dessa matéria que realmente parecia interessado em fazer Jornalismo sério e disse verdades incontestáveis: "Além de sermos ruins em previsões, somos dados a afazer muitas suposições acerca de tudo. É preciso ter muito cuidado com isso [...] O antídoto de previsões erradas é ir para a rua e apurar. Formule perguntas e as responda objetivamente, não presuma nada", a frase mais verdadeira de todo o texto. O Jornalismo um dia serviu pra dizer às pessoas o que estava acontecendo. Em algum momento do caminho esse propósito se perdeu quase que por completo, e atualmente o Jornalismo faz um esforço sobre-humano pra dizer às pessoas o que elas devem fazer. A pior parte é ver quanta gente apoia com fervorosidade o Jornalismo como "quarto poder". Isso é muito prejudicial. Valida o jornalista a fazer quase qualquer coisa porque "o público precisa saber" - e isso simplesmente por que o jornalista quer que seja assim. Depois que Trump foi eleito, os jornalistas tentaram uma última cartada - as promessas de campanha. Quando perceberam que o Presidente eleito estava realmente disposto a cumprir cada uma delas, e que efetivamente estava prestes a cumprir algumas, tudo acabou, os jornalistas finalmente admitiram que não tinham a menor ideia do que ia acontecer a seguir.
O que quero enfatizar com isso é o problema que o Jornalismo tem nas mãos ao se dar uma importância absurdamente maior do que a que realmente tem. "O Jornalismo muda o mundo", "o Jornalismo é o espelho da realidade", "o Jornalismo é o meio de comunicação mais confiável", mas é incompreensível para os jornalistas o fato de que o mundo gira independente da vontade deles. No caso da eleição de Trump, o candidato já sabia que seria vencedor exatamente porque os jornais davam como certa a vitória dos Democratas. Hillary Clinton culpou todo mundo por sua derrota, menos a sua própria inépcia. Chegou-se ao absurdo de recontar os votos em Winsconsin e descobrir mais de 100 votos extras pra Trump. Curiosamente, não há na matéria inteira nenhuma palavra sobre a atuação de Hillary em Benghazi. Engraçado como enchem a boca pra dizer que Trump é “misógino” (isso vindo do mesmo espaço que parece esquecer nossos próprios misóginos, como Lula e Zé de Abreu), mas acha que seria melhor empossar na Casa Branca uma potencial cúmplice de terrorismo – e posso usar exatamente esse termo, porque se a palavra basta como acusação, Trump é tão misógino quanto Hillary é cúmplice de terrorismo.
Donald Trump na Casa Branca representa, sim, uma ameaça direta ao Jornalismo. Não porque aumentará o risco de censura, mas porque forçará o Jornalismo a sair de sua zona de conforto e voltar às raízes, com sapato sujo, trabalho pesado e sem a pretensão de produzir videntes e ‘especialistas’ que sabem de tudo sem realmente saberem de nada. E é justamente por isso que acabo tendo um certo respeito pela Daniela Pinheiro, ainda que discorde categoricamente de quase todas as conclusões dela. Deixou bem clara, sem filtro e sem rodeios, a sua posição ideológica, o que é bastante honesto considerando todos os outros que ainda tentam se esconder naquela cortina de fumaça chamada "imparcialidade", obviamente inexistente. E, trazendo Chesterton de volta: "O Jornalismo é popular, mas é popular principalmente como ficção. A vida é um mundo, e a vida vista nos jornais é outro".

quinta-feira, 1 de junho de 2017

... E Sherlock Holmes tinha razão...

O maior (tanto de qualidade quanto de barriga) autor de livros da Grã-Bretanha, Gilbert Keith Chesterton, era Jornalista dentre outras várias atividades. Uma de suas frases imortais diz o seguinte: “Não foi o mundo que ficou pior, foi o Jornalismo que ficou melhor”. Chesterton se referia principalmente ao modo como os jornais pareciam mostrar mais precisamente os detalhes da notícia, com menos fantasia e mais informações concretas, de certa forma uma novidade no início do século XX, sucessora de uma época marcada pelo chamado Jornalismo Literário. Jornalismo este que Truman Capote, por alguma estranha razão um dos maiores nomes jornalísticos do século passado, parece ter se empenhado vivamente em trazer de volta em “A Sangue Frio”. A história de como dois asssassinos – Richard Eugene Smith e Edward Perry Smith – invadiram a casa de Herbert Clutter e mataram-no, assim como os demais membros da família, a esposa Bonnie e os filhos Kenyon e Nancy.
Capote dedicou anos de sua vida profissional a pesquisar tudo o que foi possível sobre o massacre da família Clutter, no Estado do Kansas, em 1959. Alguns poderiam ver essa frase e pensar simplesmente que o autor passou horas em bibliotecas e arquivos de jornais ou pendurado no telefone. Bem provável que isso também tenha acontecido, mas também ajudou o fato de que Capote chegou em Holcomb, palco da tragédia, um mês depois de esta ter acontecido, de modo que acompanhou em primeira mão praticamente toda a investigação feita em busca dos assassinos. É importante destacar esse detalhe. Um bom Jornalismo é feito, antes de tudo, com uma apuração que seja no mínimo ótima. O Jornalista que consegue deitar as mãos no maior número possível de materiais relevantes ao seu trabalho pode permitir que a história surja por si mesma, sem praticamente nenhuma interferência de sua parte. E é importante destacar também este ponto, porque existe um mito corrente entre os leigos que se deve, de certa forma, a esta obra: toda informação concernente a um assunto merece ser publicada.
E não, não merece.
Se existe algo de condenável em “A Sangue Frio” é que Truman Capote mostrou ser, se não um sonhador, um mentiroso. Ele promete Jornalismo e entrega um romance água-com-açúcar. Ele teve nas mãos a chance de entregar um material que seriviria de guia tanto de apuração jornalística quanto de investigação policial. Capote preferiu esconder o máximo possível de informações relevantes a respeito do passo a passo da rotina policial e encher o relato de floreios e devaneios. Há de se questionar mesmo até onde podemos confiar no quanto de imersão o autor teve para descobrir cada pensamento e ação ínfima de cada personagem participante da trama. Como, por exemplo, no trecho abaixo:

-Nossa, Kenyon! Estou te ouvindo.
Como sempre, Kenyon estava com o diabo no corpo. Seus gritos subiam pelas escadas:
-Nancy! Telefone!
Descalça e de pijamas, Nancy desabou pelas escadas. Havia dois telefones na casa: um no quarto que o pai usava como escritório, outro na cozinha. (Pg. 22; Editora Abril)

A única informação relevante nesse trecho é o número de telefones e a localização dos mesmos. O resto é apenas uma tentativa de fazer o leitor entender que os Clutter eram uma família interiorana comum com uma rotina comum de família. Algo que poderia ter sido explicado em menos de um capítulo apenas com entrevistas feitas com amigos e vizinhos. Além disso, nesse trecho participam apenas Kenyon e Nancy, ambos mortos durante o ataque. Como Capote saberia todos os detalhes precisos da cena e do ambiente sem pelo menos uma testemunha? Situações assim aparecem em diversas partes do livro, e piora quando o autor embarca em sonhos e pensamentos pessoais dos personagens. É o suficiente para começar a questionar se Capote não aproveitou para tomar algumas “licenças poéticas” em pontos específicos. Mas se isso realmente aconteceu em um livro que deveria ser um relato jornalístico, pode-se questionar a veracidade de TODOS os fatos apresentados ali. E isso por si só é um grande problema.
E assim é explicado o título desse texto ser “... E Sherlock Holmes tinha razão...”. Para quem lembra dos contos do detetive criado por Sir Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes tinha exatamente essa reclamação a respeito dos humildes relatos feitos pelo Dr. John Watson: transformar aquilo que seria uma amostra das habilidades analíticas de uma investigação real em uma literatura comum “que pode muito bem entreter, mas não instruir o leitor”. O livro por si só é uma ótima narrativa, prende a atenção e cumpre o seu papel como literatura. Mas, e faz-se necessário voltar a insistir, “A Sangue Frio” é um romance literário baseado em fatos reais, e NÃO um livro-reportagem, e seria muito mais decente da parte de Truman Capote se tivesse admitido essa verdade desde o princípio.